Inteligências (nossas ...)
“Não há nada tão equitativamente distribuído no mundo como a inteligência: todos estão convencidos de que têm o suficiente".
É claro que essa frase não é de minha autoria, é do filósofo René Descartes, e já gosto mais dela do que gostei da famosíssima “Penso, logo existo”.
Tudo isto para introduzir o texto de hoje sobre Inteligências, porque se eu falar que é sobre inteligência artificial vai parecer que estou de implicância. Para esclarecer, eu não sou negacionista, ela está aí, vai expandir e promover ainda mais transformações, mas vamos já deixar combinado aqui que não sou a maior de suas entusiastas. Principalmente quando ela se propõe a fazer arte. Se você estava nesse planeta em meados do mês passado deve ter acompanhado a explosão de animações de IA feitas “by” Studio Ghibli, tão inteligentes e artísticas quando o artista natural foi capaz de ser. E nem quero hoje problematizar direitos autorais, as big techs não nasceram para serem reguladas, ao que indica seguirão fazendo o que querem de nós.
Bom, meu ponto é outro. Começaram nos vendendo que a IA faria todos os serviços chatos e operacionais, analisaria com maestria um alto volume de dados que jamais daríamos conta, tudo isto para abrir caminho para exercermos de fato nosso poder criativo, nossa inteligência, nossa capacidade humana de conexão com o outro, blá, blá, blá, mas agora querem que a gente compre que ela é brilhante até fazendo arte.
Na faculdade fiz uma disciplina optativa sobre os tipos de inteligência (humana), porque naquela época era tudo que tínhamos à disposição. A professora nos apresentou um cara chamado Howard Gardner, ele definiu bem nove inteligências, eu ia lendo o artigo, à época, e encaixando pessoas que conheço e julgo inteligentes. São essas: lógico-matemática, linguística, espacial, corporal-cinestésica, musical, intrapessoal, interpessoal, naturalista e existencial. Eu ia encaixando minha avó, minha mãe, minha professora de língua portuguesa do ensino médio, Guimarães Rosa … Enfim, dá pra ser agraciado com mais de uma inteligência, me parece que Da Vince é um grande recordista nisto, mas, em linhas gerais eu vi beleza no aspecto da complementaridade, do quanto nós (humanos) somos coletivamente muito potentes (e competentes) quando nos permitimos caminhar juntos. E veja bem, eu estava em processo de formação na Universidade de São Paulo, lá fervilhava o conceito de equipes multidisciplinares, eu passei os meus 4 anos de formação descobrindo o mundo e achando assombrosa sua dimensão. Então, talvez tenha nascido dessa experiência prévia o meu leve ranço com a IA. Já tenho compreendido melhor seu uso em muitos aspectos, mas no mundo da arte ainda me incomoda, não aceito muito bem o fato de ela escrever, fazer música, poesia ... e afins.
Eu gosto de escrever e sonho com o dia que ao preencher formulários vou meter um escritora no item profissão. Bom, como escritora defino arte assim “é quando você mostra a sua alma pra alguém e essa pessoa enxerga a si próprio através da produção do artista”. Quem viu Gil cantar ao lado de sua filha, em fase avançada de um tratamento de câncer, já sem esperança de cura, sabe do que estou falando. Gil escreveu Drão em 1981 … e nos emociona hoje, porque a arte é potente e atemporal. O encontro do último sábado tinha mais entrelinhas do que melodia ou palavras cantadas. Era música feita por gente, cantada por gente, para gente.
“Drão, o amor da gente é como um grão
Uma semente de ilusão
Tem que morrer pra germinar
Plantar n'algum lugar
Ressuscitar no chão, nossa semeadura
Quem poderá fazer aquele amor morrer
Nossa caminha dura
Dura caminhada pela estrada escura
Drão, não pense na separação
Não despedace o coração
O verdadeiro amor é vão, estende-se infinito
Imenso monolito, nossa arquitetura … “
Recentemente li uma biografia do Van Gogh, um artista brilhante, que viveu extremos de pobreza, rejeição e durante toda sua vida viveu algum grau de instabilidade mental. Ele transformou tudo isto em arte do mais alto nível. Cada passo da sua jornada me fez admirá-lo e querer conhecer sua obra em profundidade. Arte toca, emociona, transcende. É uma experiência, ainda, demasiado humana e nem vou entrar no mérito dos livros porque sou absolutamente suspeita, tenho encantamento e deslumbramento neles, mas vou citar um trecho do diário de Kafka no dia 2 de agosto de 1914:
"Alemanha declarou guerra à Rússia. Natação à tarde."
Essa é a essência de um diário (vida), um acontecimento de proporções globais e históricas aliado à intimidade cotidiana de quem escreve, porque é assim que reconhecemos a vida. É assim que sobrevivemos à realidade e damos conta de viver nesse mundo. Veja hoje, há uma tensão global imensa, alguns especialistas dizem que estamos caminhando para uma terceira grande guerra e quando chego em casa tem sempre algum copo ou prato por lavar, assuntos corriqueiros para resolver com minha família. É possível compreender o dizer de Kafka, mais de 100 anos depois, porque diz muito sobre nossa humanidade.
Hoje acompanhei a despedida de um líder no meu trabalho, vi transbordar emoção, gratidão, bom humor, doçura, a condução era permeada pelo tema legado, falou-se de resultado, mas isto não foi o mais importante, na verdade as pessoas nem o colocou pra jogo. Porque o grande legado é mesmo o que fica no coração (humano) das pessoas ao serem atravessadas ao longo do tempo.
Para fechar, o aspecto que mais me fascina nas inteligências (humanas) é o humor, Suassuna manda bem, mas meu filho de 12 anos e minha filha de 9 também. As pessoas dotadas de humor inteligente são em geral as melhores, para mim. Sabem rir de si, sabem carregar com leveza situações difíceis e deixam o mundo melhor habitável.
“Através do humor vemos no que parece racional, o irracional; no que parece importante, o insignificante. Ele também desperta o nosso sentido de sobrevivência e preserva a nossa saúde mental”. Charles Chaplin, um cara muito inteligente e revolucionário.
Bom feriado aí! Que você seja invadido por experiências tranquilas e naturais.
Forte abraço!
Dê